terça-feira, 25 de outubro de 2011

Medo midiático e a Jornada do Herói

Por Renato Kress

A vida cotidiana é vivida numa sucessão interminável de fatos, dados, datas e acontecimentos. Vivemos sobrecarregados, atordoados e minimizados por televisão, computador, facebook, twitter, jornais, revistas, imagens e representações de uma realidade que já quase não vivemos senão por projeções. Projetamos nosso presente e deixamos que ele se alastre por diversos instantes que cronologicamente pertencem ao passado e a uma expectativa de futuro, de forma que viver efetivamente o presente é quase impossível hoje em dia.

Exercita-se, diariamente, a idéia de que devemos nos informar sobre o que ocorre ao nosso redor e, na nossa cultura, a forma mais corriqueira de informar-se é ler um jornal, revista ou ver o noticiário na TV. É apenas uma idéia cultural, não é uma realidade nua e crua. Se realmente nos atermos aos interesses em jogo nesses veículos de comunicação, perceberemos outras lógicas operando no que chamamos de "jornais", lógicas que cabe sempre a cada um, individualmente, estar a par para poder conscientemente concordar ou discordar, aceitar ler ou ignorar, manter sua assinatura vitalícia do jornal ou buscar fontes alternativas cujos valores sejam mais coerentes com os teus valores enquanto indivíduo.

Mas antes de tudo é preciso conhecer os interesses que movem esses meios de comunicação e, para isso, podemos fazer da mesma maneira como fazemos com as pessoas ao nosso redor, observar suas ações ao longo do tempo para determinar a trajetória do caráter delas. Usar a nossa memória para analisar os veículos que se propõem a ser uma "memória sobressalente" sobre a nossa sociedade e cultura. Não é um exercício fácil, mas como tudo o que diz respeito à Jornada do Herói, o fácil não tem mérito, não tem esforço, não imprime uma marca densa na memória, que é o que queremos.


A vida é um processo de contínua mudança. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O processo pode ser lento o suficiente para que tenhamos a impressão de uma consciência mais ou menos rígida de quem somos e do que somos, mas em efeito essa consciência muda com o tempo e o espaço.

Representamos o que na sociologia se convencionou chamar de "papéis sociais" distintos ao longo da vida e em diferentes meios, mas o "papel social", o que Jung denomina como "persona", faz parte e é também uma representação coordenada, socializada, do self, de nosso eu mais íntimo. Então se a persona muda essa mudança reflete também o grau de espectro aceitável dentro das manifestações possíveis do self. Ou seja: eu me adapto à sociedade e essa adaptação mostra também um pouco das minha escolhas, da minha autonomia e natureza íntimas. Minha "persona" é parte do meu "self", a escolha que efetuo sobre a parte minha que irá se aventurar e se expor ao mundo fala também de mim, do meu eu que escolhe e do meu eu que se esconde.

O que importa para compreendermos como a Jornada do Herói se implica no momento histórico que vivemos, com a disseminação do medo coletivo e difuso televisionado diariamente, é compreender como a autonomia do indivíduo é roubada, como o seu caráter libertário, sua liberdade, é cerceada pelos mecanismos que buscam deter o poder da narrativa, o poder de doar o sentido ao mundo.

Quem conta a história dá o seu enfoque, dá a sua versão, enfatiza o que interessa e o que percebe. Aquilo que mais me atinge num determinado acontecimento vai ser aquilo de que mais me lembrarei quando relatar o acontecimento a alguém, sempre! O enfoque depende das minhas sensibilidades e interesses. Por isso sempre convido meus alunos a compreender os interesses dos que contam as histórias, principalmente quando eles vendem a ideia de que estão contando histórias "reais" ou por um prisma "imparcial".

O maior de todos os medos, a meu ver, é o medo que todos os sistemas que detêm algum poder têm de que esse potencial criativo do ser humano - a capacidade de ser o narrador da sua própria história - seja descoberto e ampliado. E se amanhã a "sensação de insegurança" veiculada pela mídia acordasse com uma certa "sensação de insegurança"? Se ela não fosse mais tão "óbvia". Se ao invés de ouvirmos à televisão desligássemos e ouvíssemos o som das ruas, se conversássemos com nosso vizinho ao invés de olharmos ele como "o outro", "o desconhecido", como uma ameaça em potencial? E se abandonássemos o papel de espectador e assumíssemos uma postura de protagonistas das nossas histórias? E se criássemos nossos próprios sentidos, e se fôssemos nossos próprios heróis?


Fonte: Areté e Timé