terça-feira, 27 de novembro de 2012

[Entrevista] Cinema de tradução com Jorge Furtado

Por Guilherme Bryan

Cineasta que traduziu clássicos de Lewis Carroll para o português discute o valor do texto na criação de filmes.



Desde a adolescência a personagem Alice, de Lewis Carroll, povoa o imaginário do cineasta gaúcho Jorge Furtado, de 52 anos, conhecido por curtas como Barbosa (1988) e Ilha das Flores (1989) e pelos longas Houve uma vez Dois Verões (2002), O Homem que Copiava (2003), Meu Tio Matou um Cara (2004) e Saneamento Básico - O Filme (2007). Não é à toa, portanto, que ele dedicou os últimos anos a traduzir, com Liziane Kugland e pela editora Alfaguara, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de 2007, e Alice Através do Espelho (E o que ela encontrou lá.

Autor do romance Trabalhos de Amor Perdidos (2005), escrito por encomenda da editora Objetiva, começou a carreira como jornalista na gaúcha TV Educativa. Foi um dos primeiros blogueiros do país. Jorge Furtado defende o cinema coletivo praticado, por exemplo, pela Casa de Cinema de Porto Alegre, da qual é sócio desde o surgimento, em 1987. Gaba-se de sempre aparecer nos créditos de seus filmes simultaneamente como diretor e roteirista e comemora o fato de, em março de 2008, ter sido homenageado pelo Harvard Film Archive, ligado à Universidade Harvard (EUA), com uma mostra dedicada aos seus filmes.

Apesar de acostumado a usar o pronome "tu" à gaúcha, mesmo quando não necessário, considera vital a leitura e o domínio da língua para a atividade de cineasta: "O cara só aprende a ser cineasta lendo. O cinema cria imagens, mas a leitura cria imaginação. Quando lê, tu filma na tua cabeça. No cinema, alguém imaginou por ti e criou as imagens".



Como surgiu a oportunidade de traduzir os dois Alice?

Desde a adolescência, eu leio a Alice em várias e várias versões. A primeira que li foi a do Tesouro da Juventude. Depois li a tradução do Monteiro Lobato e, mais tarde, a do Sebastião Uchoa Leite. Aí me interessei em ler o original. No final dos anos 90, fiz uma primeira tentativa de tradução, não integral, para uma peça de teatro que foi montada pela Luana Piovani. Nos anos 2000, resolvi enfrentar o livro todo. Mas meu inglês não dá para isso, de maneira alguma. Então convidei a Lizane Kugland, que é tradutora e foi minha professora de inglês, e fizemos juntos. Levamos uns dois anos para traduzir o primeiro. Em seguida, pensamos em fazer o segundo e, após começarmos a ler, chegamos à conclusão de que seria até mais interessante, com o mesmo espírito de fazer uma tradução bastante fiel, na íntegra, e adaptada para crianças brasileiras de hoje. Algo que elas poderiam ler sem nota de pé de página e entender as piadas.



O que você acha das traduções brasileiras?

As duas traduções que eu conheço com o mesmo espírito da nossa são a do Monteiro Lobato e a da Ana Maria Machado. São traduções do texto integral para crianças. As outras são adaptações ou traduções em que só se entende a piada lendo a nota de pé de página ou o original também. Do segundo livro, não conheço outra tradução como a nossa. O livro é feito de trocadilhos, silogismos, coisas de lógica e piadas de todos os tipos com a língua. Mas totalmente compreensível para crianças inglesas do século 19. Se tu traduzir literalmente para hoje, uma criança não entende nada. Então era preciso entender a piada naquele contexto em que foi dita, a intenção do autor, e adaptar para as crianças imaginárias de hoje.



Por exemplo?

Quando Alice cai no poço, ela brinca com o som das palavras bat (morcego) e cat (gato). Quando tu vais traduzir para o português, se traduz "gato" e "morcego" não tem graça. São palavras muito diferentes. Então a gente teve de traduzir para "gato" e "rato", e inventar outro jeito de chegar à frase. Aí a criança entende a brincadeira, pois adora trava-línguas e jogos de palavras. A gente deu um salto quando tinha de traduzir "Tweedledum and Tweedledee". As crianças não entenderiam nada da piada, pois não conheciam aquela canção britânica. Então tivemos de achar uma canção brasileira, original, em português, que as crianças entendessem. Chegamos então no "Tindolelê" e "Tindolalá", que elas conhecem e, sonoramente, são parecidas com o original.



O que uma boa tradução precisa ter?

A boa tradução é a que mantém a intenção do autor e o prazer da leitura na língua de destino. É preciso ter um respeito à intenção, mas tratar com algum desrespeito os detalhes do original, para poder fazer com que ele faça sentido numa nova língua e numa outra época. Ivo Barroso, grande tradutor, dizia que só existe uma crítica possível a uma tradução: outra tradução. O Carroll tinha uma imaginação prodigiosa. É um livro de muitas brincadeiras com lógica e linguagem, pois ele era um grande matemático e pesquisava a potencialidade da língua.



O que achou do filme do Tim Burton?

Visualmente lindo, como tudo o que ele faz, e uma porcaria inqualificável como roteiro e desrespeito ao original. Ele não poderia ter chamado o filme de Alice no País das Maravilhas porque, primeiro, mistura os dois livros todo o tempo, e, segundo, porque, no caso dele, transformou a Alice numa heroína moralista, com espada na mão, tentando matar o dragão. É o oposto do livro. Talvez a maior revolução do Lewis Carroll tenha sido fazer um livro para crianças que não é moralizante. A literatura infantil, até então, era para ensinar as crianças a serem adultas comportadas. Tim Burton seguiu a lógica hollywoodiana, de bem e mal. O personagem do Chapeleiro é constrangedor, ajudando a Alice a derrotar o dragão. O funk do Gato é para sentir vergonha alheia (risos). E o filme termina com a Alice moralizadora, saindo suja de barro de um buraco real e partindo de navio para fazer negócios na China, de acordo com o interesse da Disney de conquistar o mercado chinês. Carroll deve ter rolado na tumba.



Como você se relaciona com o uso da língua portuguesa no cinema?

Abel Gance (cineasta francês) diz que o cinema é a música da luz. E gosto de música com letra (risos). Para mim, o cinema está mais relacionado com a poesia do que com a prosa, porque é um texto com ritmo, métrica, estrofes e versos. O cinema tem uma métrica perfeita, inclusive tecnicamente, os vinte e quatro quadros por segundo. Eu me preocupo muito quando estou escrevendo com o modo como as pessoas vão ouvir. Escrevo com o ouvido. Isso é uma característica de quem trabalha com a dramaturgia do teatro e do cinema. Com quem escreve um texto que vai ser ouvido. Jorge Luis Borges diz que a leitura em voz alta de um texto é um ótimo teste da sua qualidade. Sempre leio meus textos em voz alta, é uma experiência que serve para todo mundo sentir o ritmo do texto e a sonoridade das palavras.



Por que, desde Ilha das Flores, a locução tem uma importância grande nos seus filmes?

O texto em off é uma importação da literatura. Gosto muito e funciona muitas vezes, quando é um adicional ao filme e não uma muleta para a cena. Também sempre gostei de misturar várias fontes. Ilha das Flores surgiu num momento, talvez inédito no Brasil, de utilizar o hipertexto, com uma palavra que leva para outra palavra, em camadas. Essa ideia de relacionar conteúdos rapidamente eu acho muito apropriada para a linguagem audiovisual. Curiosamente, Shakespeare foi um dos primeiros a fazer mudanças de um cenário para outro, desrespeitando regras teatrais da época. (David Wark) Griffith, em Intolerância (1916), pula de uma época a outra rapidamente. E, com a linguagem cada vez mais rápida e acesso a muita informação, tu podes utilizar o poder do audiovisual e concentrar muita coisa num tempo curto, mudando de um registro para outro. Pensar na linguagem é quase um tema do meu trabalho.



Qual o peso do roteiro na qualidade do filme?

O roteiro é peça fundamental e o ponto de partida de um filme. Ele é uma forma de expressão, mas há algumas técnicas que podem ser aprendidas. Quase todos os bons roteiros quebraram regras. É difícil quebrá-las e, para quebrar, é bom conhecê-las. Tem de trabalhar muito no roteiro antes de começar a filmar. Um filme é caro, com uma equipe grande, e é difícil na montagem refilmar coisas. No roteiro, não. Você escreve e reescreve sozinho. Mas o filme é o resultado de um trabalho coletivo. No Brasil, a qualidade do roteiro tem melhorado, pois as pessoas se deram conta de que precisam trabalhar mais na história. Porém, ao mesmo tempo, faltam roteiristas no Brasil. Há bons e novos roteiristas, mas ainda é a maior carência, pois eles são um ser de dois mundos. Tem de saber escrever e gostar de cinema. E quem não lê não sabe escrever.



Fonte: Revista Língua Portuguesa